sexta-feira, 23 de março de 2012

Descida ao Centro do Porto


Por entre as ruas, por tantos vociferadas como sombrias, acostado ao balcão deste tasco de realidades múltiplas, sinto que desci mais uma vez à terra, a das verdades, a do quotidiano sofrido, marcado pela existência, pela coerência, pelo trabalho.
Este é um exercício especial, pela sua simplicidade, pela sua magnitude. Todos devíamos, de quando em vez que fosse, descer à terra, à terra dos tolos, dos ébrios, daqueles que passam pela vida sem que o seu nome venha nos periódicos, nem tão pouco em um ou outro Big Brother.
Lá dentro, batem-se mãos na mesa, cartas são desfraldadas e escondidas ao ritmo do jogo incessante, parte do repetido exercício de matar as horas.
É um entra e sai constante, vendem-se copos de vinho a um ritmo alucinante, pedem-se mortalhas e cigarros avulsos, numa paridade que desconfio, se irá cruzar com algo mais, para matar as saudades, para se relembrar o sorriso.
Aprecio este tasco, preenchido pela voz da D.Amélia, que ainda não se absteve de conversar, desde que aqui entrei, enquanto multiplica os olhares para o caderno em que estou a escrever. Aguardo sempre que aqui escrevo, que venha a pergunta: O que está a escrever? Porque escreve tanto? Não receio tais questões, mas espero que não venham tão cedo, não sei bem o que lhe responder.
Aproximo-me do final do meu copo de vinho, que por sinal, pese embora não seja martelado, não é, de todo, o melhor néctar do Mundo, tendo sobretudo a seu favor, o extra de vir acompanhado desta ambiência singular.
Bem perto, a antiga Cadeia da Relação, a cela de Camilo, a cela de Ana Plácido, que tantas vezes visito.
Tem neste momento, a D.Amélia já par, a curiosidade intensifica-se. Uma curiosidade que não é nunca intromissora, é só e apenas curiosidade, na sua mais natural forma de ser.
“Olha aí um copo de maduro tinto e um café!”, balbuciou a sombra de voz embargada pelos anos de vida, algures entre os 70 e 80. Parece que o tempo estagnou aqui neste local, parece que o planeta jamais voltou a girar. Prefiro esta terra, adoro aqui descer.
Talvez mesmo o boémio Camilo já aqui tenha estado, talvez num copo de maduro tenha também amargurado. Talvez…

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Casa Amarela


Já cheguei com sofreguidão trôpega
Tais cores pálidas entusiasmam
Cheiro a velho e a usado
Rangem tábuas, confluem riscos, Fernando Pessoa na escadaria a mirar,
Atmosfera desamparada, tal como suspeito aqui os corações
Mão ásperas mas afinadas, quadros tortos,
Não é frio, esconde mesmo o calor de Verão
Nas salas, “litradas” de tinta a esbanjar
O que prolifera das mentes, tornado arte pelos corpos
“Queres uma bolacha”? Não, agradeço.
Recusar é feio, mas estou cheio…
Cheio com a vossa tamanha imensidão!
Vou deixar o email, sei que me irão avisar
Quero repetir, quero voltar, voltar
Subir e descer as escadas, cumprimentar Pessoa, recusar a bolacha, deixar o email,
Se fecharem vou ficar à porta a bater incessantemente
Até me deixarem entrar.


sábado, 11 de fevereiro de 2012

Insónia


Se dormis-te mal e fui eu o causador
Caso não tenhas descansado, inquieta na cama
Com a irritação a invadir-te o já de si mau génio
Tal e qual a cegueira de um morto
Sobre o meu lado, pendeu uma calma
Muito própria, natural, quando estás no meu leito
Perigoso sinal, mas tão ao meu jeito
De que as dores nas costas, sou suspeito
Mesmo de uma difícil jornada, talvez
Que se avizinha, na aurora
Queria hoje estar eu com insónia
Podendo admirar o teu sono de fora
Carregando as tuas maleitas, de uma só vez
E o teu sorriso…Esse!
Jamais dormiria.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Sentido


O sentido há muito que perdeu os sentidos
A razão faz muito tempo que desapareceu
A ausência de dúvidas tornou-se o Karma dos feridos
Ferida esta que se transformou em breu.

Se a nobreza daqueles a quem as feridas não saram
E a perda do medo e das dúvidas
Faz atingir a altivez nos Homens
Deixa o coração a sangrar de incertezas áridas.

A altivez é capaz dos maiores feitiços
Ébrio orgulho, mania por ventura
Quebra a união dos maiores solstícios
Actua impiedosa, qual severa mão dura.

Sendo o tempo remédio de males maiores
Sendo este elixir da razão
Que a altivez continue connosco senhores
Nem que seja guardada num misterioso alçapão.