terça-feira, 8 de novembro de 2011

Insanidade


Assustei-me! Estarei louco?

Até vinha com os olhos postos apenas e só no chão que pisava, passo ligeiro e mente despreocupada, não fosse esse vulto mordaz prender-me a alma e a rua estaria estagnada, cinzenta como sempre. Eras tu? Não podias ser tu.

Eu queria que fosses. A tua silhueta a aproximar-se de mim, sorrateiramente, de sorriso nos lábios e vontade de me surpreender. Olhei de relance para trás, como que se um medo até hoje nunca vivido, estivesse a decepar a razão. Era afinal esperança que estivesses a chegar. Não eras tu! Acreditei que fosses. Como não poderias ser? Era o teu passo, o teu jeito estranho de andar, o teu vestido esbatido, a tua silhueta, até mesmo o teu perfume antecipava a tua chegada. Porra que estou a ficar louco! Tinha quase a certeza…

Não conto a ninguém, pronto. Faço de conta que não é esta a enésima vez que isto me esta a acontecer. Devia ser alguém parecido contigo. Mas como, se não há ninguém como tu?
Talvez conte ao meu melhor amigo, esse sem dúvida compreenderá, com olhar trocista vai-me apaziguar o espírito e dizer que já lhe aconteceu também. Uma ou duas vezes. Dirá que é normal. Mas mentiria se me dissesse. Ele não conhece alguém como tu. Vai mentir para eu me sentir bem, menos louco. Vai rir-se de mim, mas quem não faria o mesmo?

Estás aí outra vez, no fundo da rua? Porque voltas-te a desaparecer? Porque foges?

Bastava sorrires para mim, chamares-me de tolo, como de resto já tantas vezes fizeste. Chama-me de tolo. No fundo é mesmo isso que sou. Um tolo. Mas não me apareças assim! Foge! Foge antes de mim, faz de conta que não existo e cruza a estrada para não passares nem perto. Melhor… Desaparece para bem longe! Mas… É mesmo longe que estás. 

Mas que raio, se estas longe porque teimas em aparecer? No banco do jardim, na carro parado ao lado do meu no semáforo, na publicidade aos chocolates, na 33ª página da revista que estava a ler sossegado. Ia jurar que eras tu! Tinhas até o cabelo como sempre quis que tivesses. Parecias mesmo tu.
Bom…desaparece, já é tarde e não paras de serpentear o corredor, da sala para o quarto, do quarto para a sala. Não, agora és mesmo tu. Conheci-te pelo andar desajeitado, pelo vestido branco, pela silhueta que já conheço decor, pelo perfil. Só podes ser tu! Mas como, se estás tão longe?

Assusto-me! Estarei louco? De certeza que sim…

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Mestre Constantino


Sempre que para lá corria, ou por mero acaso passava à sua porta, quase sempre encontrava-o sentado, sem que na sua postura se revelasse qualquer espécie de laxismo ou preguiça, o que era atestado pelas suas mãos marcadas por um passado de entrega ao dom, com que nunca percebi se nascera por oferta divina, ou se tinha apurado com as necessidades da vida. A complexa arte de conferir ao calçado já gasto pelas pedras da calçada, o esplendor de novos, um costume que nos dias de hoje tende a parecer um hábito medieval. 

A sua pequena oficina quase sempre tinha um aspecto desalinhado e o aroma que sentia por dentro, era perceptível mal se pusesse o pé no primeiro degrau. Graxa, um intenso odor de graxa, almiscarado com algo que o meu sentido ainda jovem e pouco apurado nunca terá conseguido decifrar, que sem ser incomodativo, era sem dúvida uma imagem de marca. 

Os seus olhos pouco se desviavam dos pormenores dos seus gestos, pouco ou nada se erguendo para fitar as pessoas, o que contrastava com a sua capacidade comunicativa, que prendia e saciava a minha mente curiosa, num espectro temático que podia ir do quotidiano ao filosófico, qualidade esta que era oferecida gratuitamente a todos e quem consigo quisesse, na quantidade quase sempre imensa de tempo que parecia ter, partilhar….Não me recordo nunca do Mestre se ter colocado no pedestal de sábio e foi sempre hábil na humildade de aprender!

Concerteza a dureza dos tempos em que terá crescido, creio eu, na mesma Leça da Palmeira onde o encontrei, não o permitiu passar muitas horas nos bancos de escola, e o liceu não lhe deve ter registado o nome, mas a passagem longínqua, fruto dos seus cerca de 8 décadas, pela escola da vida fazia a sua voz entoar firmemente. As ideias fluíam com uma lucidez invejável, as quais já não eram de todo acompanhadas pelo corpo, esse já num declínio natural, culminando com a proeminência da sua barriga e pernas trôpegas. A calvice e os óculos de massa castanhos faziam o resto, mesmo que curiosamente sempre tenha desconfiado que ainda fazia palpitar um ou outro coração cansado, tal o corrupio de entregas para colocar capas nos ainda sapatos novos das senhoras, de certo respeitáveis, das ruas adjacentes. Não me recordo de um homem com uma alma só, parecendo que ainda convivia com uma alma gémea, talvez há muito desaparecida.

Faltam Homens assim nos dias de hoje? Talvez…Mestres, esses hoje há muitos, com capa e batina, desfilam queixo erguido e ombros confiantes de canudo na mão! Nunca ninguém lhes disse que não sabem nada? Ou sabem pouco? Que a borrasca os espera cá fora e que a bonança teima em chegar? Não lhes digam então!

Tenho esse sentimento tão português, a saudade, a palpitar dentro de mim sempre que me recordo do Mestre Constantino…Gostava de perceber o que dariam Homens como ele, com uma "mão mais forte para ir a jogo"…

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Alter Ego


Não sei se sou tónico de mil odores
Sei que não sou génio, na mente de um louco
Capaz de provocar tenebrosos horrores
Exasperando tantos e tão poucos.

Sou vil, escamado em veneno de réptil
Sombria presença, que faz da chantagem
A mais reflectida fama de um estado febril
Partida e meta de uma mesma viagem

Descarrego na tez de um copo de vinho
Tamanha vontade de ócio obsceno
Escrevo nas tortas linhas de um pergaminho
Palavras disformes de um temperamento ameno.

E tu que tens tantas vezes o dedo apontado
Esfinge afiada, altivez submersa
Não sabes o bem que faz o pecado
Se esqueceres para sempre a insípida conversa!

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Ânsia


Um dia tive pressa com a chegada aquela foz
Corrente de emoção movida pelo ardor do sentimento
A ânsia de chegar embargava-me a voz
Instigava a mover o meu corpo ferrugento

Transpunha todo e qualquer trajecto para metade
Silvas e pedras dilacerava no caminho
Fazia de roteiros desconhecidos minha herdade
O desejo da meta, único pergaminho

A temperatura que na pele fazia desaparecer
Qualquer e toda razoabilidade imponente da alma
O perigo do querer e do ter
O receio de não ter medo de perder a calma

Como se mil motivos fossem agora necessários
Mil e uma experiências não tivesse vivido
Fossos e almas perdidas em desencontros vários
Convergindo na certeza de nunca ter sucumbido.

domingo, 2 de outubro de 2011

Tango Simbiótico


Momentos de rara beleza, privilegiadamente observados ao ínfimo pormenor atribuindo-se-lhes o tempo que merecem, entram na esfera da não perda de tempo.
Balançado pelo embalo dos carris, primeira fila e olhos postos num ecrã natural, ao longe o toque da doçura avermelhada do Astro o qual se diz ser Rei, lentamente comungando com o azul imenso e misterioso, na forma de um corpo uno, tango simbiótico e arrebatador.
Dois mundos que se entregam diariamente aos encantos da luxúria, sem que nunca sejam assolados pelo cansaço, jamais enjoados um do outro, como quem anuncia o breu da tristeza do tempo, ainda que breve, em que o seu abraço se desfaz.
No esplendor da sua eterna paixão, mostram-se em toda a sua plenitude, sem vergonha ou pudor, gritando o quanto se sentem alheados de tudo o que os rodeia, suficientemente arrojados para não se esconderem.
Outros momentos têm lugar na frieza de uma menor intensidade, recolhendo-se pois, ao recato da privacidade e não deixando terceiros intrometerem-se, nos quais apenas fica o vislumbre de breves trechos fugazes, prova circunstancial da continuidade da sua dança em uníssono.