segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Mestre Constantino


Sempre que para lá corria, ou por mero acaso passava à sua porta, quase sempre encontrava-o sentado, sem que na sua postura se revelasse qualquer espécie de laxismo ou preguiça, o que era atestado pelas suas mãos marcadas por um passado de entrega ao dom, com que nunca percebi se nascera por oferta divina, ou se tinha apurado com as necessidades da vida. A complexa arte de conferir ao calçado já gasto pelas pedras da calçada, o esplendor de novos, um costume que nos dias de hoje tende a parecer um hábito medieval. 

A sua pequena oficina quase sempre tinha um aspecto desalinhado e o aroma que sentia por dentro, era perceptível mal se pusesse o pé no primeiro degrau. Graxa, um intenso odor de graxa, almiscarado com algo que o meu sentido ainda jovem e pouco apurado nunca terá conseguido decifrar, que sem ser incomodativo, era sem dúvida uma imagem de marca. 

Os seus olhos pouco se desviavam dos pormenores dos seus gestos, pouco ou nada se erguendo para fitar as pessoas, o que contrastava com a sua capacidade comunicativa, que prendia e saciava a minha mente curiosa, num espectro temático que podia ir do quotidiano ao filosófico, qualidade esta que era oferecida gratuitamente a todos e quem consigo quisesse, na quantidade quase sempre imensa de tempo que parecia ter, partilhar….Não me recordo nunca do Mestre se ter colocado no pedestal de sábio e foi sempre hábil na humildade de aprender!

Concerteza a dureza dos tempos em que terá crescido, creio eu, na mesma Leça da Palmeira onde o encontrei, não o permitiu passar muitas horas nos bancos de escola, e o liceu não lhe deve ter registado o nome, mas a passagem longínqua, fruto dos seus cerca de 8 décadas, pela escola da vida fazia a sua voz entoar firmemente. As ideias fluíam com uma lucidez invejável, as quais já não eram de todo acompanhadas pelo corpo, esse já num declínio natural, culminando com a proeminência da sua barriga e pernas trôpegas. A calvice e os óculos de massa castanhos faziam o resto, mesmo que curiosamente sempre tenha desconfiado que ainda fazia palpitar um ou outro coração cansado, tal o corrupio de entregas para colocar capas nos ainda sapatos novos das senhoras, de certo respeitáveis, das ruas adjacentes. Não me recordo de um homem com uma alma só, parecendo que ainda convivia com uma alma gémea, talvez há muito desaparecida.

Faltam Homens assim nos dias de hoje? Talvez…Mestres, esses hoje há muitos, com capa e batina, desfilam queixo erguido e ombros confiantes de canudo na mão! Nunca ninguém lhes disse que não sabem nada? Ou sabem pouco? Que a borrasca os espera cá fora e que a bonança teima em chegar? Não lhes digam então!

Tenho esse sentimento tão português, a saudade, a palpitar dentro de mim sempre que me recordo do Mestre Constantino…Gostava de perceber o que dariam Homens como ele, com uma "mão mais forte para ir a jogo"…

Sem comentários: